sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Texto para os meninos

O dia em que a caça consolou o caçador no Pacaembu


 
Ilustração: Andrés Sandoval
Dois alvinegros, Santos e Botafogo, faziam os grandes jogos dos anos 60. Pelé x Garrincha, fora outros gigantes dos dois timaços.

Num desses jogos, em São Paulo, os cariocas fizeram uma exibição inesquecível e, estranhamente, pouco badalada nos embates entre os dois melhores times do país naquela época. Aliás, sempre que se fazem referências aos jogos entre Botafogo e Santos daqueles tempos, só são lembradas as vitórias santistas, as goleadas de Pelé & Cia. Pois o Pacaembu estava lotado para ver mais uma.

Pelé e Mané estavam em campo, mas o diabo estava era no corpo que vestia a camisa sete, não a dez. O lateral-esquerdo Dalmo, do Santos, viveu uma tarde de terror. Garrincha pegava a bola e, andando, levava Dalmo até dentro da grande área, onde o zagueiro não podia fazer falta.

O Pacaembu não acreditava no que via: um ponta andar desde a intermediária até a área sem que o lateral tentasse tirar a bola, temeroso do drible desmoralizante. Até que Dalmo percebeu que tinha virado motivo de chacota dos torcedores, muitos dos quais nem santistas eram, mas que iam ao campo na certeza do espetáculo.

E Dalmo resolveu bater antes de chegar à grande área. Bateu uma vez, Garrincha caiu, o árbitro marcou a falta e repreendeu o paulista. Bateu outra vez, Garrincha voltou ao chão, o árbitro marcou a falta e ameaçou Dalmo de expulsão, porque naquele tempo o cartão amarelo não existia.

A terceira falta de Dalmo foi a mais violenta, como se ele estivesse pensando: "Arrebento essa peste, sou expulso, mas ele não joga mais".

Pensado e feito. Enquanto o gênio das pernas tortas estava estirado no bico direito da área dos portões principais do Pacaembu, o árbitro determinava a expulsão de Dalmo, cercado por botafoguenses justamente irados com seu gesto.

Eis que, como um acrobata, Garrincha levanta-se, afasta seus companheiros, bota o braço esquerdo no ombro de Dalmo e o acompanha até a descida da escada para o vestiário, que, então, ficava daquele lado.

Saíram conversando, como se Garrincha justificasse a atitude, entendesse que, para pará-lo, não havia mesmo outro jeito.

O Botafogo ganhou de 3 a 0 e saiu aplaudido do estádio. Tinha visto uma autêntica exibição do Carlitos do futebol, digna mesmo de Charles Chaplin, divertida, anárquica, humana, sensível, solidária.

Crônica do jornalista Juca Kfouri
publicada na revista Lance a Mais (em 9/9/2000),
ilustrada por Andrés Sandoval

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